domingo, 28 de julho de 2013

Lei de comunicação: a disputa de sentidos

Por Observatório da Imprensa
Artigo: Sally Burch*

Com a entrada em vigência da Lei Orgânica de Comunicação no Equador, em 25 de junho de 2013, coloca-se um novo desafio de grande transcendência para tornar realidade os direitos cidadãos à comunicação reconhecidos pela Constituição de 2008. Isto é, diante do atual predomínio do modelo mercantil-privado-oligopólico, como gerar e implementar novos modelos de comunicação que devolvam à cidadania o controle sobre seus processos comunicativos?
Nesta época em que a vida política de nossas sociedades, a organização e mobilização social, a disputa por ideias e modelos de sociedade e das relações sociais e interpessoais, encontram-se cada vez mais atravessadas pelos meios e tecnologias da comunicação, torna-se imperativo para os processos democráticos analisar e repensar as formas de organização, gestão e controle dos meios. De fato, a indústria midiática concentra um enorme poder que hoje, sob o modelo imperante, define a agenda pública em função de interesses privados e não presta contas a ninguém.
A Constituição equatoriana se destaca não só por reconhecer o direito a participação nos processos comunicacionais e a uma cidadania bem informada, como também por estabelecer um terceiro setor da comunicação, além do privado e do público, que é o setor cidadão sem fins de lucro – denominados como “meios comunitários” – o qual deve desenvolver-se em igualdade de condições com os outros dois setores. Este único fato, que supera a visão tradicional reduzida à polaridade Estado-setor privado, representa uma mudança pragmática significativa.
A economia popular e solidária
A repartição igualitária de frequências prevista na lei e a criação de meios comunitários seria um passo importante, pois significa uma espécie de “reforma agrária” das ondas radioelétricas que permitiria estabelecer um terreno mais equitativo e, tal como ocorreu com as terras – contribuiria a sacudir as bases do modelo atual dos “latifúndios” midiáticos. Porém isto não basta. É que promover efetivamente a participação, a interação, novos valores e uma estética diferente na comunicação, implica passar por profundas mudanças culturais, pois de pouco serviriam se a população deles não se apropria.
Se bem esta mudança de modelo não concerne somente ao terceiro setor – mas terá sentido na medida em que se generalize – é sem dúvida nesse setor que há maior potencial transformador, dado que a comunicação comunitária, popular ou alternativa tem no continente uma longa história de enraizamento e compromisso com os setores populares e de defesa da democratização da comunicação, além de rico acúmulo de experiências em comunicação participativa. Por certo, até agora tem sofrido limitações pelas condições de precariedade ficando em desvantagem diante dos outros setores.
Comparando com a economia, as teorias dominantes tomam em conta unicamente a dois setores: o provado e o público-estatal. A Constituição equatoriana de fato é uma das primeiras em reconhecer a economia popular e solidária como uma das formas de organização da economia, junto com a privada, a pública e a mista. Não obstante, nas políticas públicas se continua a tratar a este terceiro setor mais como parte das políticas sociais do que como um setor econômico com igual direito e potencial que os demais.
Comunicação e economia política
De maneira similar, no caso da comunicação comunitária, par que saia da marginalidade e assuma seu potencial transformador da comunicação, requer políticas de fomento, de formação e capacitação, de condições técnicas e fontes de auto-sustentação que a viabilizem, e claro, de muita criatividade. E isso só será viável na medida em que deixe de ser considerada como algo secundário, artesanal e circunscrito ao âmbito local. Implica também desenvolver pensamento teórico e assegurar sua plena inclusão no currículo de estudos da comunicação.
Na busca de um novo pensamento teórico para esta mudança de paradigma, uma contribuição chave vem da escola de pensamento da economia política da comunicação (durante muito tempo relegada na academia pelo pensamento neoliberal). Esta escola, segundo Robert McChesney, é orientada a entender os fatores que permitem produzir um sistema midiático que fomente valores democráticos na sociedade, e pra isso persegue duas linhas gerais de análises: por um lado, as instituições, subsídios, estruturas de mercado, empresas, mecanismos de apoio e práticas laborais que definem um sistema midiático ou comunicacional; e por outro lado, o papel das políticas públicas de comunicação e como foram debatidas e definidas [McChesney, Robert W. Digital Disconnect: How Capitalism is Turning the Internet against Democracy, 2013, The New Press.n (pp. 64-65)].
Entre os elementos centrais que esta linha de pensamento colocou em evidência, está o fato de que o mercado privado da informação não funciona de acordo aos princípios do “livre mercado”, onde supostamente a disputa regula o preço e a qualidade do produto. Isso ocorre porque a mesma informação, diferente do que ocorre com os bens físicos, pode ser vendida simultaneamente a muitas pessoas e não se gasta pelo uso. E segundo, porque a fonte de lucro não é tanto a venda do produto aos consumidores, mas a “venda” deste aos patrocinadores. Isso implica, em termos de mercado, que importa menos a qualidade da informação que a quantidade de consumidores.
Meios comunitários e públicos
Outro aspecto central da analise é a conformação de oligopólios e sua vinculação com interesses afins ao poder econômico, com o qual o jornalismo deixa de ser uma contrapartida ao poder hegemônico e a produção midiática passa a ser funcional desse poder. Assim, dessas analises de depreende que o sistema midiático imperante nas Américas, articulado em torno ao setor privado, entra em contradição direta com o direito cidadão a uma informação de qualidade, base da participação democrática. Por isso resulta fundamental diversificar as formas de propriedade e gestão dos meios.
No âmbito equatoriano, estes temas apenas começam a entrar no debate. Pouco antes de ser aprovada a Lei, o governo organizou uma Cúpula para um Jornalismo Responsável nos Novos Tempos (Guayaquil, 19-20 de junho 2013), onde em seu discurso inaugural o presidente Rafael Correa expos justamente uma análise [o discurso de Correa “Informação como direito e meios como poder” pode ser lido em http://alainet.org/active/65201 e http://www.alainet.org/active/65559 do ponto de vista da economia política da comunicação. 
Situando sua observação no contexto da atual dominação do mundo pelo capital, cujos interesses primam sobre os direitos dos seres humanos, o economista Correa situou como um primeiro problema a forma de propriedade – com fins de lucro – dos grandes meios, sendo que eles concentram m pode que cresce na medida que a informação é um bem indispensável; e por isso mesmo, argumentou, é um setor que deveria ser fortemente regulado em defesa dos consumidores.
Correa também se referiu à necessidade de democratizar a propriedade dos meios e de independentizá-los do domínio do grande capital, bem como de criar meios fora da lógica do mercado (comunitários e públicos). No caso do Equador, recordou que a Constituição de 2008 obriga a separação de poderes entre o setor econômico/financeiro e o setor dos meios de comunicação.
Economia social da comunicação
Não deixa de ser significativo que setores do poder político comecem a assumir a tese desde ha muito tempo defendida pelo movimento pela democratização da comunicação. Porém ainda falta muito para que se assuma a dimensão do desafio que significa desenvolver os novos enfoques e práticas a que se refere o início deste artigo. Justamente chamou a atenção que a Cúpula de Guayaquil não tenha incluído os aportes do setor comunitário nas mesas de debate.
Quem de alguma maneira, sim abordou o tema foi o acadêmico espanhol Francisco Sierra. Ele colocou a necessidade de um jornalismo para o bem viver e uma nova ecologia da comunicação saudável, autônoma e emancipadora. Em seu trabalho apelou para a recuperação do espaço de domínio público, não só no que se refere aos meios públicos, mas por exemplo, a garantias de acesso, participação e deliberação pública sobre a ação mediadora das industrias jornalísticas. 
Ao mesmo tempo lamentou que a maior parte dos profissionais do jornalismo no mundo não tem consciência desta dimensão pública da comunicação. “Não ha comunicação nem novo jornalismo se não ha uma afirmação da comunicação como um direito social e da informação como um bem comum”, enfatizou. Falou de recuperar a capacidade narrativa e o jornalismo cidadão, o que implica voltar às ruas.
Em debate posterior, em resposta a uma pergunta de Alai, o acadêmico reconheceu o papel central do terceiro setor nesse processo e acrescentou que esse setor “é estratégico para a regeneração democrática do tecido. Na América Latina deve ser a ponta de lança fundamental, pela tradução desse jornalismo do Sul, desde abaixo, de novas práticas, de outras agendas e outras técnicas de produção em diálogo com as pessoas”.
“Dupla moral”
Sierra apontou duas tarefas pendentes que até agora não foram assumidas pelos países: “esclarecer o que entendemos por terceiro setor; e, como organizar uma economia desse terceiro setor”. Sem desprezar os apoios do orçamento público para financiar os meios comunitários, o analista recordou que “o desafio também está em ter autonomia e sustentabilidade em seus projetos”. Por isso, saudou o fato de que a lei equatoriana – diferente da Espanha e da maioria dos países da Europa – reconheça a possibilidade de que eles se financiem com patrocínio e publicidade. 
Porém, acrescentou, colocar seriamente a organização da economia social da comunicação passa por “integração, convergência e plataformas de meios cidadãos, públicos, de propriedade do Estado – governo central, local ou autônomo – e, médios sociais da cidadania”. Sierra também se referiu a outra frente, que é como os meios desse setor “redefinem sua posição nesta convergência digital das grandes corporações privadas e dos meios públicos”. 
Citando o exemplo da Europa, lamentou que a colaboração entre meios públicos e comunitários seja praticamente inexistente. E colocou a ideia de fazer um pool de domínio público de meios cidadãos e meios públicos, para compartilhar produção, publicidade, estratégias e capacidade de organização num marco de respeito a autonomia. Pois, disse, “não é sustentável esta proliferação de meios, muito deles morrem na tentativa por puro voluntarismo”. Ainda que possam ter enfoques diferentes, até mesmo contrapostos, “si se trata de ampliar agenda cidadão domínio público, crio que os interesses são convergentes”.
Francisco Sierra concluiu reconhecendo que são muitos os desafios para poder avançar e que faz falta abrir o debate com a participação ativa de meios comunitários, para refletir sobre como materializar e desenvolver boas práticas, fato que o novo marco regulador do Equador poderia facilitar, na medida em que representa “um grande avanço democrático para o país”.
A entrada em vigência da lei desatou um confronto de opiniões e critérios dentro e fora do país, em que até agora prima a campanha de descredito lançada pelos grandes meios diante do que chamam “lei mordaça”, campanha que se intensificou ao coincidir com a solicitação de asilo político de Edward Snowden ao Equador, cujo governo é acusado de “dupla moral”. Sem dúvida a lei não é perfeita; mas sim, consegue efetivamente desatar um debate de fundo e encaminhar iniciativas para uma mudança de modelo da comunicação, então este “avanço democrático” do qual fala Francisco Sierra terá relevância não só para o Equador mas para toda a América Latina.
*Sally Burch é jornalista da Agencia Latinoamericana de Información (ALAI)

http://www.fndc.org.br/internas.php?p=noticias&cont_key=920270

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